da Magia

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A maior Magia do Mundo

 

    Há uns anos atrás tornei-me detentor de um dos segredos mais importantes do mundo.  A verdadeira magia.  Aprendi que é possível saber, sem distorção e em qualquer altura, o que pensou alguém. Mais ainda, não é preciso que essa pessoa esteja comigo, ou que ainda esteja viva. Como não sou o único a par do segredo, é possível partilhar o mesmo pensamento com milhões de pessoas, algo difícil de se conseguir se tivermos de repetir o mesmo discurso a cada uma delas.
    É óbvio que estou a falar daquilo que realmente marca uma separação importante na História. Não é de ânimo leve, nem irreflectidamente, que uma das divisões que se pode considerar entre História e Pré-História é a escrita (a outra é o dinheiro, mas isso fica para outra altura).

    Já se imaginaram sem saber ler? Conseguem imaginar a vida sem o fazer? Acreditem que já tentei muitas vezes, mas nunca consegui desligar-me totalmente.

    Uma das principais características desta magia é o facto de que depois de aprendida nunca mais se deixa de fazer uso dela. Já nos é totalmente impossível olhar para a palavra escrita sem que alguma parte do nosso cérebro a tente descodificar. Como era o Mundo antes de aprender a ler? Não me lembro. Não sou capaz de o idealizar. Consigo lembrar-me da primeira palavra que li no seu estado selvagem (aquela palavra que se nos apresenta aos olhos e sentimos necessidade de perceber o que nos querem dizer com aqueles símbolos todos alinhados, sem ser por obrigação). As que se aprendem na escola não contam, essas são as mesmas para todos e são repetidas para se reconhecer as letras. A primeira palavra é a mais importante de todas, pois é nesse momento que entramos no mundo da magia. É nesse momento que sentimos que todos aqueles dias a cantarolar palavras cuja primeira letra é a que estamos a aprender a desenhar não foram em vão (a propósito, lembram-se da Zínia e da Igreja, do Sapato e do Dedo - grande imaginação têm os autores de livros de instrução primária).

    De entre o meu Panteão de heróis há uns quantos que se destacam. De entre estes há um, que é maior que todos os outros, mas cujo nome desconheço. Trata-se do que inventou a escrita.
    Que ideia genial esta de registar os nossos pensamentos de uma forma permanente (ou quase), permitindo que outros (devidamente iniciados nestas artes mágicas) possam conhecer, sem qualquer distorção (à parte da da caligrafia...) a ideia gravada.

    Haverá algo tão mágico como a escrita? Acho espantoso como umas pequenas marcas consigam ser tão poderosas.

    Na China antiga a escrita tornou-se língua franca. Em toda aquela extensão de território havia quase tantas línguas como povos e ninguém se entendia - "Pala mim, os Cantoneses falam glego!" diriam os Pequineses. Apareceu um Imperador (cujo nome não me lembro) que, para além da habitual mudança de calendário (cada Imperador Chinês era responsável por dizer quando começavam as estações e eram depostos quando o calendário falhava...) resolveu unir o que hoje é a China através de uma língua comum - a escrita. Para que ninguém tivesse de aprender a língua do vizinho a escrita chinesa é ideográfica. Cada símbolo representa um conceito e é lido de forma diferente por cada povo, embora todos saibam o que é... Até ao final do Séc. XIX muitos povos de zonas afastadas da China comunicavam exclusivamente pela escrita sempre que se encontravam... o sistema funcionou.
    É claro que esta escrita tem uma série de inconvenientes em relação à escrita fonética que os Fenícios inventaram (julga-se) e que usamos. A escrita chinesa não tem qualquer ordem. De entre os mais de vinte mil ideogramas ninguém é capaz de dizer qual deles deve ser representado primeiro, não é possível alfabetar em chinês... o que torna a organização das bibliotecas, no mínimo, impossível.

    Não é só o facto de permitir transmitir ideias que torna a escrita mágica, é também o poder que vem associado a estas ideias. E o poder exerce uma imensa atracção no Homem.
    A escrita tem exercido um fascínio imenso em todas as civilizações. As grandes nações da Antiguidade (a Clássica e as outras ainda mais antigas) orgulhavam-se das suas bibliotecas. A palavra escrita era um bem precioso, era preservada e cuidada. Os grandes desastres do passado são medidos pelo número de obras perdidas nos incêndios das bibliotecas...

    Ainda hoje as bibliotecas emanam um magnetismo especial. É com orgulho que Alexandria inaugura a nova biblioteca. É com ainda mais orgulho que as bibliotecas de todo o mundo apregoam o número de obras que albergam. Maior orgulho sinto eu ao ler algum destes livros.

    É um facto que sem a escrita o Homem não teria chegado onde chegou. De que forma poderiam os cientistas de diferentes épocas e lugares partilhar experiências? De que forma poderíamos saber que já houve alguém que resolveu o nosso problema sem que a conhecêssemos?

    Só não festejo mais o facto de saber ler porque sei que há muitos que não o sabem, nem nunca o poderão aprender.

    O simples facto de estarem a ler esta divagação já me enche de orgulho, e não é por ser minha, é por saber que há mais quem esteja iniciado nesta magia. E por muitas vezes que me perguntem (lendo este texto) o que disse neste momento (uma da manhã de 4 de Maio de 2002) serei capaz de o repetir palavra por palavra, tal como o fiz agora (se o lerem de novo, obviamente).

    É ou não é magia que estes pequenos rabiscos postos ao lado uns dos outros possam significar tantas coisas?

 

    Por hoje fico por aqui, espero que em breve possa completar esta divagação com uma parte dedicada aos livros - outra parte importante da escrita.

 

    Boa noite.