Biografia e notas pessoais


Capítulo Nono

também conhecido como Passagem de Ano
ou fechaste a janela?

 

    Desde que as pessoas passaram a ter de se preocupar em cultivar para comer que foi necessário conhecer a marcha do tempo. Não convém plantar nada na época errada... de pois passa-se fome.
    Se os antigos fossem todos milionários já não precisavam de ter inventado o tempo... bastava pagar, que as coisas apareciam feitas. É o velho paradoxo de se ser tão rico que não se precisa de trabalhar, mas compra-se um relógio para não se chegar atrasado (e se chegar, também ninguém diz nada...).

    Bom, como ia dizendo, inventaram o tempo. Puseram-se a olhar para as estrelas. Afinal de contas, não havia televisão (e mesmo se houvesse, o mais certo era estar a dar o programa do Goucha). Acabaram por reparar que as coisas se iam repetindo e acharam que sempre que as mesmas estrelas passassem no mesmo lugar à mesma hora do dia (marcada por relógios de Quartzo, obviamente) tinha passado um ano. Suponho que esta e outras conclusões tenham aparecido depois de longas sessões de experimentação de substâncias psicotrópicas...

    Foi assim que apareceram os astrónomos (que acabaram por degenerar em Engenheiros Geógrafos, mas deixemos isso por uns instantes).

    Pois bem; determinou-se a duração do ano. E tudo corria bem, até que alguém se lembrou de contar os anos que já tinha visto... contou poucos. Mas outros se seguiram e começaram a aperceber-se que nunca se contavam muitos e que era melhor era nem terem começado a contar. Passou a andar toda a gente angustiada, com os poucos anos que ainda lhes restavam ver. Não é que fossem muito diferentes uns dos outros, mas ficava sempre bem dizer que se tinha visto o ano em que se tinha semeado trigo no vale.

    «Grande coisa, ainda ontem estive no vale a semear trigo!»
    «Bom, então e o ano em que se ceifou centeio? Eu ainda vi esse!»
    «Daqui a duas semanas vais ter de o ceifar outra vez...»
    «Bolas, porque raio é sempre tudo igual? Temos de arranjar maneira de distinguir os anos uns dos outros, que assim fico muito confuso.»

    É claro que esta conversa foi mantida à volta de uma taça da grande invenção desse ano (ou teria sido de um outro qualquer), que era cevada esquecida num pote que tinha acabado por fermentar...
    Escorregava bem e ficavam todos um pouco alegres e a pensar se não deviam chamar o Eusébio para lhes ir buscar um pouco de marisco do dele...

    No meio de uma destas reuniões acabaram por decidir que haviam de dar uma festa para marcar esse ano (quando fizesse frio, porque assim tinham desculpa para não sair para trabalhar).
    O costume foi pegando e arranjou-se uma maneira infalível de assinalar cada ano e recordar cada um sem confusões.

    «Lembras-te do ano em que o Zé se emborrachou tanto que a caminho de casa caiu ao rio e quando chegou a casa ainda levou com o rolo da massa?»
    «Isso acontece todos os anos, pá!»
    «Foi no ano em que o Pinhas fez saltar a rolha do champanhe antes da hora!»
    «Mas nesse ano que caiu ao rio foi o Quim!»
    «Não foi nada! Estás é bêbado! Bebe mais um copo»

    É certo que este sistema de catalogar os anos ainda tinha as suas falhas, mas caminhava a passos largos para a perfeição! Hoje em dia fala-se do ano em que os americanos invadiram o Iraque e em que houve um grande atentado no Médio Oriente (assim é muito mais fácil do que andar a tentar saber quando é que se cultivou milho no monte)... Quero dizer, há algum ano em que não haja um atentado no Médio Oriente? E já houve algum ano em que os americanos não tenham mandado umas bombocas para o Iraque? Acho que era melhor o sistema do milho no monte...

    Alguns milénios depois, já com a televisão a dar o programa de fim-de-ano do Herman (curiosamente, gravado em Setembro e sempre com os maiores artistas de renome internacional, que acabam os espectáculos de Verão com 30 galas de fim de ano seguidas) mantivemos a tradição de marcar cada ano com uma festa. É claro que como o tempo deixou de ser contado em dias e anos e toda a gente tem um relógio com precisão de pintelhésimo de segundo (que estiver curioso quanto à dimensão desta unidade não SI deve ler os capítulos anteriores), já não se festeja o ano em si, mas o preciso momento em que se passa de um ano para o outro. Devido a uma série de complicações técnicas que a minha profissão ainda não conseguiu ultrapassar (o facto de a terra não ser plana é uma chatice), este momento não é o mesmo para toda a gente... Mas como se resolveram juntar todos numas coisas chamadas fusos horários, só para a festa ser maior, corre tudo sobre esferas.

    Para não sermos diferentes do resto do mundo e termos desculpa para dar uma festa, resolvemos aproveitar a onda do Natal (outra festa com muito que se lhe diga) e fazer uma festa na semana seguinte. Resolvemos chamar-lhe a passagem de ano (para as outras pessoas pensarem que a gente queria mesmo era ver o Herman na televisão e não só para arranjar pretexto para recordar um ano que se tinha passado). E se querem que vos diga... nem sequer tínhamos televisão...

    A sugestão da Beta fomos todos para casa da bisavó dela (que já não precisava da casa... e este mistério vai ser resolvido já no parágrafo seguinte), na Sapateira. A Sapateira é uma terrinha perto da terra do pão-de-ló, Alfeizerão.

    Um dia, estávamos a beber café, em casa da avó da Beta (e não da Bisavó) e a apreciar as chávenas.
    «Avó, quando já não precisar das chávenas posso ficar com elas?»
    «Err... podes...»
    «Ups, não era bem isto que queria dizer. Quero dizer, era, mas não era!»
    Foi mais um daqueles diálogos em que se abre uma imensa cratera debaixo dos intervenientes...
    A bisavó da Beta já não precisava da casa porque... quero dizer, não era bem isto que queria dizer, mas enfim... já não precisava dela...

    Voltando ao assunto principal.

    O Radical deslocou-se no seu Saxo  verde garrafa, equipado com um removedor automático de burriés no tablier, e uma bagageira cheia - só com o seu saco de roupa e umas quantas próteses electrónicas. A sua máquina fotográfica nova era uma delas...
    Quando viu que a Ervilha, que é gaja (e gosta de malas, malinhas e malotas cheias de roupas e cremes e de ir às compras e coisas assim) só trazia uma mochila, quase lhe dava um ataque de frieiras nos dedos das mãos.

    Só o saco do ser de cabelos brancos era mais volumoso que todos os sacos dos restantes convivas juntos. É aqui que ele me vai mandar à cara que a capacidade da bagageira do Saxo dele é de apenas 280 litros (sim, fui-me informar para não ser chamado  de imbecil por um imbecil que colecciona a Turbo desde 1754) e que as nossas bagagens perfaziam um volume de 314.45 litros, com uma densidade de 0.86, ao passo que a dele tinha uma densidade muito menor... e a dele já vinha devidamente alfabetada e separada por data de lançamento (parece que estava a catalogar os mp3 enquanto fazia a mala).

    Caso o pobre do carro tivesse bola de reboque, é certo que teria de arrastar mais malas até à Sapateira.

    E até hoje estamos por saber o que raio estava no malvado do saco. Seria a colecção completa da AutoMais? Seriam as Turbo? Seriam os gnomos de jardim raptados em França? Uma gigantesca colecção de grãos de areia, alfabetados e polidos com cotonetes? Ou apenas uma mão-cheia de pinhas "a voar em arco"?

    O Jojoca atirou-se de cabeça para a sua bomba vermelha e partiu em alta velocidade para Alfeizerão. Desta vez leu o manual de instruções do triângulo de pré-sinalização de perigo... (que tem de estar sempre armado, quando a bomba anda). Dois dias depois já tinha chegado às portagens de Loures. Por volta do Natal já avistava Óbidos. Não fosse a providencial descida para as Caldas da Rainha, tinha passado o ano a ser ultrapassado pelas marcações da estrada...

    Antes de chegarem à Sapateira, fizeram desvios-técnicos por tudo quanto era sítio. Um deles, para ver a nossa colega que foi Beatificada recentemente, Jacinta. Trouxeram bolos para todos, excepto para nós... tss, tss. (Que maus colegas, não são).

    Na noite de fim-de-ano, tivemos o prazer de encher a pança, bandulho e o bucho (como bons ruminantes) com as gambas que o Sr. Fonseca cozeu com muito amor e carinho. Aproveitou também para fazer um creme de camarão. Para tal, usou umas quantas cabeças das gambas que já estava cozidas. Assim, havia camarão com e sem cabeça. É claro que quem não gosta de comer as cabeças aos bichos atacou primeiro os decapitados, que cedo desapareceram.

    Eu não vou referir o nome do animal, mas houve alguém que arrancou a cabeça a um dos que sobrava, comeu-lhe o corpinho e depois se virou, com um ar angelical, a perguntar o que se fazia com as cabeças... A Beta, com o seu feitio pouco brusco chamou-lhe os nomes todos, é claro.

    Nessa noite, colocámos os carros (incluíndo a bomba, que já tinha chegado) no logradouro da casa. Depois de algumas manobras para fazer caber todos e conseguir fechar os portões, passámos à fase seguinte: descarregar tudo.
    Para as pessoas normais foi bastante rápido. Agarrámos nos sacos e metemos tudo em casa.
    Depois sentámo-nos a apreciar o espectáculo, do Radicalho a mandar quatro estivadores sacar-lhe o saco que tinha ficado incrustado no fundo da bagageira do removedor automático de burriés equipado com automóvel. ficou furibundo porque lhe dobraram uma revista.

    «Bolas, parecem mesmo o carteiro que insiste em enfiar a revista A4 numa caixa de correio A5! Estou a ver que tenho de ir reclamar à estação de correios mais próxima»

    Com tanta reclamação, começou a chover. Castigo divino, dirão alguns, mas o meu pai nunca foi vingativo... espera lá, acho que me enganei no argumento... eu era o Messias noutras histórias... aqui sou um mortal como os outros... ou, pelo menos, aparento!
    Com a condensação do vapor de dióxido de hidrogénio nas camadas mais baixas da troposfera e consequente aumento das dimensões das gotículas assim formadas, a crescente atracção gravítica exercida por estas gotas sobre a Terra provocou um deslocamento do logradouro onde nos encontrávamos para cima (usando as convenções normais de sentidos em referenciais inerciais). Ou foi assim, ou foi precisamente ao contrário, já não me lembro. Mas posso garantir que dum ponto de vista newtoniano, é indiferente ser a Terra a atrair a chuva ou a chuva a atrair a Terra, molhámo-nos na mesma.
    Bom, chovia. Em desespero, corri para casa. Disseram-me que era muito doce e julguei que era feito de açúcar. Não convinha arriscar-me a apanhar chuva e depois derreter-me todo...
    Quando me viram fugir a 14 pés (fugir a 7 pés em passo acelerado), julgaram todos que estavam a dar bolos dentro de casa e foram atrás de mim. Até o Radical que, com a pressa, se esqueceu de fechar a janela do seu Saxo... só o descobriu no dia seguinte.

    Passámos à difícil tarefa de decidir quem dormia onde. As meninas ficaram a dormir num quarto, o Jojoca e o MigMac noutro. Por decisão democrática (isto é, minha) o Radical ficou num quarto separado (por causa da muita bagagem). Infelizmente acabou por dormir no chão do quarto do MigMac porque depois de deitado ainda sobrava cerca de um metro de Radical, para além da cama. Esquecemo-nos de o avisar que havia camas mesmo pequenas...

    Depois de alguma risota, lá mostrámos onde ficavam as coisas mais importantes. A casa de banho, a cozinha, a porta da rua...

    É claro que eu, o Radical e o MigMac começámos logo a congeminar um plano para fotografar alguém a tomar banho... bastava que alguém se esquecesse de trancar a porta. Havia a máquina do Radical sempre à mão e tudo.
    As meninas trancaram bem a porta. O MigMac também. Eu tomei banho noutra casa. A Beta também.
    Se fizeram bem as contas... sobra apenas uma pessoa... o Radicalho!
    É claro que, estando a par da conspiração, nunca lhe ocorreu que também podia ser vítima. É claro que esperámos até que estivesse bem molhado.
    Abrimos a porta com a máquina já preparada. Fomos surpreendidos por um esqueleto com pele, acocorado dentro da banheira, de chuveiro na mão. Estava totalmente incrédulo.
    Infelizmente, essa fotografia comprometedora perdeu-se por um azar no computador da vítima. Afinal de contas a máquina era dele e foi ele quem ficou com a foto.

       Na noite de fim de ano era necessário comer... bom, deve-se comer todas as noites. Apesar de ser uma noite especial (dez dias depois do Solstício de Inverno), há certas coisas que fazem parte da rotina. Uma delas é comer.
    Apesar de fazer parte da rotina, tinha de ser diferente! Resolvemos grelhar carne.
    Que ideia tão original, pensámos todos. Por certo mais ninguém se lembrou de fazer isto na noite de fim de ano! Somos mesmo especiais. O Jojoca ficou logo de pulga atrás da orelha: «Tenho de dizer ao Sr. Santa Cruz, porque assim poupa-se no gás...»
    O principal problema era o de que a grelha, só por si, apenas se limita a segurar o bicho (já morto, diga-se) no sítio. É necessário usar uma coisa que nos foi revelada (lá no tempo em que os Gregos andavam pelo mundo vestidos só com um lençol, a filosofar) por um tal de Prometeu (que, por ter contado o segredo aos mortais, vê o seu fígado devorado por uma águia todos os dias, enquanto amarrado a um rochedo - suponho que ao fim de tantos anos se tenha tornado adepto do Sporting só por pirraça para com a águia...).
    Era preciso um voluntário para acender o lume.

    O MigMac foi voluntariado para a difícil tarefa. Afinal de contas, tinha sido escuteiro e toda a gente sabe que os escuteiros vão para o mato fazer fogueiras, cortar árvores, perseguir velhinhas até às passadeiras e coisas assim.

    «Toma os fósforos. Tens ali lenha e pinhas. Acende o lume para se poder aquecer a grelha.»

    Ao fim de duas caixas de fósforos e muita paciência esgotada, a madeira ardia tanto como há duas horas. É certo que havia uma pilha de fósforos riscados em volta da lenha. Mas as chamas tardavam a aparecer.
    Por momentos julguei que se tinham esquecido de pagar a conta da lareira, e isso era uma chatice - onde raio se encontra uma agência que aceite pagamentos de lareiras no dia 31 de Dezembro, à tarde? Teríamos de passar fome? Comer a carne crua? Olhar para o Radical a procurar camarões decapitados?

    A solução chegou de onde já se esperava:

    «Mas é preciso ir aí um homem?» Reclamou a Beta, no meio de uma chuva de insultos que fariam corar o Capitão Haddock.

    «Nos escuteiros nunca tive de fazer fogueiras só com fósforos... havia acendalhas e petróleo e coisas assim...» balbuciava o MigMac, um pouco envergonhado.

    Lá fui eu nomeado para puxar fogo à lenha. Fui ao meu saco do Sport-Billy e tirei o lança-chamas. Ajeitei a lenha, risquei um fósforo, acendi o lança-chamas (um pedacinho de palha) e acendi a lareira...

    «Até parece que não estiveste em Tróia. Não aprendeste a empilhar a lenha? Belo escuteiro me saíste!»

    Com o ego ferido, MigMac retirou-se para brincar com o instrumento do Radical... a máquina fotográfica, seus maldosos!

    Alguns minutos mais tarde, já o porco morto fumegava na grelha.

    E depois... fez-se o silêncio. Se uma mosca estivesse com gases, toda a gente o saberia. A fome era negra e bicho morto grelhado com pão e batatas fritas cala muita boca que só sabe reclamar (com fome, claro).

    Depois da pança cheia, estava na hora da palhaçada! E que coisa melhor para fazer que por o Radical a espingardar?

    Acontece que apareceu lá um cão... que enfiou a máquina na boca (sim, aquela que continha uma foto do Rad todo nu - que nojo!) e andou a passear pelo quintal, a marcar território aqui e ali. Felizmente que o conseguimos apanhar. Afinal de contas já estávamos outra vez com fome e um cachorro quente nunca fez mal a ninguém (mesmo que ainda ladre). A máquina, um pouco lambuzada, foi recuperada e o magnífico filme canino foi aclamado com um Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim (na categoria de melhor filme cujo realizador é um cão tinhoso)... para os curiosos: O FILME! [cerca de 1 Mb]

    O resto da noite foi passado na palhaçada. Até que alguém se lembrou que não tínhamos nem rádio, nem televisão. E ninguém tinha o relógio certo. Seria difícil saber quando era meia-noite.

    A solução para este problema tão difícil foi conseguida adoptando a filosofia do preguiçoso:

    «Deixa estar, que logo saberemos.»

    E foi isso que aconteceu. Quando os nossos relógios marcavam aproximadamente meia-noite, começaram a ouvir-se foguetes e panelas a bater por toda a redondeza. Concluímos que deveria ser meia-noite e festejámos também.
    Uns minutos depois deu-se nova explosão de alegria e ficámos a saber que não éramos os únicos com os relógios mal certos. Mas voltámos a festejar!

    É um bom método. Ninguém tem de ser preocupar com o relógio. Ninguém anda às aranhas a tentar sintonizar um televisor que só apanha chuva. Ninguém atura o Herman.
    Só pode correr mal se ninguém, nas redondezas, tiver o relógio certo...

    Para nós, não deve fazer diferença, mas para quem quer dormir nas redondezas, deve ser muito chato ter de gramar festejos de ano novo a cada 30 segundos.

    Deve ser quase tão mau como para quem trabalha numa estação de televisão que, desde o meio-dia, está a ver como passaram os Australianos o ano, depois os Chineses, depois os Indianos, depois os Russos... e, à parte da língua, todos fazem as mesmas figuras e dizem o mesmo.

    Depois de mais um pouco de festa, acabámos por nos ir deitar.
    O resto da desgraça só aconteceria no dia seguinte!

    Durante a noite, com receio de serem violados por uma manada de gnus selvagens (muito comuns naquela época do ano), Jojoca, Radical e MigMac resolvem barricar-se no quarto. Requisitaram os serviços de uma bilha (ai se o Pinhas me ouvisse) de gás e enfiaram-na atrás da porta. Como em qualquer filme de terror, deixam sempre uma passagem por barricar e nem repararam que já tinham um ser esquelético a dormir no chão - podia não significar nada, mas era um mau agoiro!
    Não sei se foi do gás (ou gases, quem sabe) mas o certo é que acordaram frescos que nem alfaces - do Lidl, diria o Jojoca. 

    Durante a manhã, passaram-se coisas verdadeiramente estranhas...

    Tudo começou quando uma porta, misteriosamente, apareceu selada. Um fio vermelho, ligando ambas as maçanetas das portas, materializou-se do nada. Parecia uma casa selada judicialmente (não é que o fio sele grande coisa, mas se o cortarmos vamos de cana).
    Algum tempo depois, a Ervilha tenta sair do quarto. Queria ir mudar a água às azeitonas mas a porta estava selada...
    Ainda hesitou um pouco, mas depois pensou:

    «O meu pai é PJ, se for preciso ele pede que venham cá por um selo novo. Fixe!»

    Enfiou a mão pela fresta da porta e começou a tentar soltar o raio do fio vermelho. Não contava é que a porta estivesse a ser guardada à vista.
    Lá estava o MigMac, de G3 ao ombro e camuflado (tamanho XL), a ver de onde raio vinha aquela mão.

    Do lado de dentro, a Ervilha nada sabia, mas estavam prestes a decepar-lhe a mão - à boa maneira Saudita.

    Felizmente para nós, o MigMac teve pena de sujar a casa com sangue e acordar as outras pessoas com os gritos, por isso resolveu abordar o problema de uma forma alternativa:
    Iria tentar partir os dedos que apareciam pela fresta com as próprias mãos!
    Só que o raio dos dedos da moça são mesmo pequenos. Até o Polegarzinho tinha dedos maiores que ela. E os dedos do MigMac são dedos condizentes com o seu tamanho... era difícil segurar aqueles palitos nas mãos, quanto mais parti-los!

    Às tantas, a Ervilha julgava que lhe estavam a fazer uma manicure de borla, já que lhe torciam e puxavam os dedos - como uma massagem.

    Acabou por perceber que estava a ser torturada e ameaçou chamar o pai (e a respectiva shotgun). O MigMac apercebeu-se de que ia ser chato ter de andar ao tiro só por causa de um selo partido e lá deixou a moça ir à casa de banho.

    Entretanto, eu e a Beta, estávamos deliciados com o pequeno-almoço. Como somos muito finos, começámos com um belo creme de marisco!
    Pronto, admito, esquecemo-nos da sopa na noite de fim-de-ano...  e resolvemos desforrar-nos alarvemente. Posso é garantir que não cai nada mal tomar um pequeno-almoço de creme de marisco, gambas (com e sem cabeça) caviar e champanhe.

 

    Um pouco mais tarde pudemos gozar um pouco com o imenso saco do Radical. Em frente à casa havia um banco de jardim, tal qual o do filme Forest Gump. Misteriosamente, o saco ganhou vida e deslocou-se qual Rivotti pela porta da bagageira do Saxo e foi-se materializar no referido banco. Só faltava lá o caramelo da caixa de chocolates...
    Já imaginam as voltas que aquela cabecinha acelerada deu, à procura do saco da morgue a que chamava mala. Passou dois milhões de vezes em frente ao banco. Nunca olhou para o raio do saco. Mas deve ter-se perguntado se não faltava a tal caixa de chocolates.

    O Jojoca acabou por entrar também em pânico. Tinham-lhe gamado o carro! Ele bem perguntava:

    «Mas quem é que queria aquela coisa? O vidro do passageiro não abre, o triângulo não se equilibra e chumbou na inspecção!»

    Afinal, o caso era mais sombrio que parecia. A bomba tinha sido vendida pela TVShop. Cansados de vender merdas que só os americanos compram e depois ficam com armazéns cheios daquilo, optaram por uma nova estratégia: vender merdas que ninguém compra, mas que já estão em Portugal! O carro do Jojoca foi a sua primeira experiência.
    Foi devolvido uns dias mais tarde, com uma nota de desculpas - porque não o conseguiram impingir a ninguém sem nada que fazer com televisão, telefone, um cartão de crédito e poucos neurónios.
    A verdade é que conseguimos uma cópia do spot. Como é possível que alguém tenha pensado em vender aquilo? Vejam com os vosso próprios olhos: O ANÚNCIO! [Cerca de 1,5 Mb]

    Um possível comprador seria o pendura de um VW Bora que vi no Viaduto Duarte Pacheco... seguiam a mais de 100 km/h e, qual não é o meu espanto, quando vejo um vulto erguer-se através do tecto de abrir. Na mão esquerda tinha uma antena. e entreteve-se a enroscar a dita no local apropriado para se enroscar uma antena de auto-rádio no VW (que é sempre atrás). Só faltava terem o carro todo pintado com cores berrantes, uma música com muitos rufares de tambor, e um fato de lantejoulas para entrarem para um circo!
    Quem se arrisca desta maneira só para ouvir música com menos interferências, deve achar que o bólide do Jojoca é um primor de segurança!

    E para quem julga que somos só nós a dizer mal do Radical, engana-se! Até a avo da Beta, que já viu muitas coisas nesta vida, achou que ele era um bocado esquisito. Afinal de contas, há algum ser racional que se dê ao trabalho de escolher as ervilhas todas que tem no prato, para as por de lado? Bom, por outro lado, vindo do gajo que reclamou por a cantina não ter talheres de peixe, tudo é possível...

 

    Agora vou esperar por correcções e ameaças de morte, por parte dos visados desta história.

    Mas lembrem-se que qualquer semelhança com pessoas, locais ou situações é pura coincidência, já que se trata de ficção... cof... cof...

 

Queluz, 5 de Abril de 2004
A minha mãe faz meio século!