Biografia e notas pessoais

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Capítulo Sétimo

também conhecido como os rápidos
ou como testar a segurança das pontes de Portugal.

   

    Bom, no meio das minhas muitas e inumeráveis aventuras devo relatar mais uma.

    Logo após a queda da ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-rios, fui convidado (mais a Beta e uns amigos) para uma descida do Zêzere em canoa.
    Para quem não sabe, o rio Zêzere é um afluente do Zambeze. É dele que sai a maior parte da água que se bebe em Lisboa e arredores. Depois de bem misturada com quantidades industriais de cloro (que a EPAL garante ser um suplemento vitamínico), é servida a copo, torneira ou bebedouro.

    É claro que quando me convidaram não sabiam bem onde me estava a meter... é que o Zêzere não é um rio como os outros! É considerado dos rios mais perigosos do mundo. Tem rápidos K-8 (e a escala só vai até 6!!!), infestado de crocodilos, pedras afiadas que rasgam os fundos dos barcos e muitas, muitas piranhas.

    Para além de mim e da Beta, foram connosco o Radical, o MigMac e o Panzer e a sua cara-metade.

    O Panzer é um novo companheiro de viagem. Que se pode dizer dele? É cúbico e parece um carro blindado (daí o nome...). 90 kg de karateca cinturão negro, professor de educação física e é uma criança de 30 anos.

    Bom, nesse dia fatídico deslocámo-nos até à vila de Constância. Como o nome indica é muito constante. Nunca sai do mesmo sítio, por isso foi fácil dar com ela. Estava onde a deixámos da última vez...

    D. Sebastião, fugindo da Peste refugiou-se nesta pacata vila. Depois, foi ver uns terrenos para os lados de Alcácer (de guitarra às costas, procurava um sítio para construir uma vivenda com piscina e garagem para dois coches), mas parece que se perdeu no meio do nevoeiro e nunca mais voltou... Dizem que elevou a vila e concelho a terra que tanto estimava.

    Alguns séculos depois, D. Maria II ( uma puritana, sem dúvida alguma) mudou o poético nome da terra de Punhete para o escabroso "Notável Vila de Constância". Ela bem dizia que o seu antepassado Sebastianito era um tarado e só pensava naquilo. Assim se perdeu um pedaço de história... e a oportunidade da José Hermano Saraiva de demonstrar o que se fazia «Aqui! Neste lugar... D. Sebastião passava o tempo a... pensar nas donzelas. Porque tinha muito tempo para pensar.... Ora tocava guitarra, ora tocava ao...» Bom, já deu para perceber.

    Com o passar dos tempos, foi ficando esquecida a parte da «Notável Vila». Hoje em dia é Constância, singelamente.

    Ora então, é neste contexto histórico que a nossa alegre comitiva chega à terra constante.

    Depois de recrutar carregadores em número suficiente, lá nos preparámos para atravessar aquele caminho horroroso (faz lembrar alguém?) que ligava o carro ao parque de campismo. É verdade que não tínhamos muita bagagem, mas uma expedição sem carregadores não é expedição! Que se há-de fazer.

    E como a  categoria das expedições se mede pela quantidade de carregadores... a nossa tinha de ser de elevadíssima categoria, no mínimo umas 7 estrelas!

    Lá chegámos ao parque de campismo, após uns extenuantes 200 m.

Ficou combinado que iríamos fazer um pouco de rappel na ponte de Punhete, perdão Constância. Os nosso carregadores já tinham trazido todo o material necessário: boudriers, cordas, fitas-de-sangue, oitos, mosquetões e garrafões de tinto. Já só faltava o jeito.

    Ainda houve quem se tivesse voluntariado para fazer rapappel (rappel sem boudrier), mas voltámos a vestir-lhe o colete de forças e devolvemo-lo ao hospital.

    De princípio tudo correu bem. Eu, o MigMac, a Beta e o Panzer (mais uns amigos dele) descemos sem problemas da ponte para a margem do rio. Não era muito difícil. Bastava um pequeno impulso para se passar a guarda da ponte e depois era uma pequena viagem até ao chão. Tudo isto sem complicações ou perigo.

    Quando chegou a altura do Radical fazer a sua descida, apercebemo-nos de que estava mais nervoso que o habitual, de tal forma que era possível ver-lhe os cabelos a perderem a cor e grossas gotas de suor apareciam-lhe no sobrolho (parecia que lhe estavam a espremer a cabeça).
    Lá o conseguimos convencer a transpor a guarda da ponte. Esta operação não foi nada fácil, já que foi preciso ir aquecer os ferros em brasa uma mão-cheia de vezes.

    Da primeira descida é capaz de não se lembrar muito bem, julgo que desmaiou quando lhe espetámos lascas de bambu debaixo das unhas. Foi descido e suavemente depositado no chão. Foi carregado até a uma sombra e reanimado à estalada.

    Para a segunda descida já foi mais complicado... Fazê-lo passar para o lado de fora da ponte já não foi tão difícil (bastou mostrar-lhe o bambu) mas depois é que foram elas!

    Depois de devidamente amarrado e amordaçado (não foi amordaçado porque mordia o lábio inferior com tanta força que não lhe conseguimos por a mordaça - se mordesse mais um pouco podia-se candidatar a receber um adorno com o dos índios da amazónia - dá muito jeito para os almoços volantes, onde nunca há sítio para se pousar o prato!) lá foi instruído para afastar o corpo da guarda da ponte. De seguida pedimos-lhe, com bons modos obviamente (e um taco de basebol nas falanges), que se deixasse inclinar até quase ficar horizontal.
    Após alguma hesitação, lá consegui comandar as pernas para dobrarem pelo joelhos. Agora, em posição fetal, a cabeça ficou à altura devida, só faltava ter o corpo esticado para iniciar a descida.
    «Estica as pernas!» ordenou o Panzer.
    Prontamente as esticou. Conseguiu ficar de pé, de novo...
    «Não, tens de te baixar!» Lá voltou a encolher as pernas.
    «Estica as pernas!»
    «Não, deixa o corpo ficar em baixo! Estica só as pernas!»

    Decididamente, isto não estava a correr nada bem!

    Ao fim de muita indecisão, deu com ele com o nariz a um palmo da cara do Panzer, que estava a segurar-lhe o cabo de segurança. Para ver se se decidia a descer, avisámo-lo de que se não descesse, o Panzer seria obrigado a beijá-lo... O Radical ficou a pensar seriamente se havia de abraçar a causa gay.

    Nesta altura, a ponte começou a tremer. Oscilações vigorosas faziam com que os rebites se soltassem e mergulhassem no vazio abaixo de nós. Por momentos julgámos estar na falha de Santo André (não, o holandês da Terceira não é nenhum santo!). As imagens dos terramotos de São Francisco, Turquia, Japão percorreram-nos a mente. Já imaginávamos o Marquês de Pombal a dar voltas na sepultura, só de pensar que ia ter de reconstruir Lisboa de novo.

    Como apenas a ponte tremia, percebemos não se tratar de um tremor de terra. Era apenas o Radical a tremer de medo. Os seus joelhos pareciam martelos pneumáticos. As vibrações transmitidas à ponte só me faziam lembrar o Pichichau (um adorável peluche equipado com um poderoso massajador facial trifásico) ligado à corrente. Será que o Radical era funcionário do Estado, encarregue de testar a segurança das pontes? Se fosse, não estava a ser muito consciente, pois havia o risco da ponte cair e estava gente lá em cima (pronto, gente não será o melhor termo - afinal de contas o MigMac estava connosco).
    É de salientar que a sua veia analítica nunca deixou de trabalhar. Ainda hoje o Radical é capaz de nos dizer, por ordem alfabética, o tamanho, passo e estado de conservação de todos os parafusos que caíram, bem como o nome de solteira da bisavó dos ferreiros que cravaram os rebites perdidos neste teste.

    Começo a desconfiar que os argumentistas dos X-files afinal não estavam muito longe da verdade... Eles andem aí! O Radical não pode ser deste mundo.

    Afinal de contas, depois de quase duas horas de tremeliques, saltos, vibrações e pancadas na ponte, acabou por desistir da descida. O certo é que durante as duas semanas seguintes todos andámos com formigueiro nas extremidades e visão desfocada...

    Mesmo assim, ainda tentámos fazer outra descida, num sítio mais alto. Fomos para o meio da ponte e montámos as cordas. O Panzer voluntariou-se para testar a segurança dos seus nós. Lá desceu e preparávamo-nos para iniciar a nossa descida quando apareceu a Guarda!

    «Ó fachavor! Têm autorização para fazer rappel na ponte?»
    «Sô guarda, telefonámos para a câmara e disseram que não era preciso...»
    «Ah, mas agora já é. É por causa dos pterodáctilos!»
    «Pterodáctilos????»
    «Sim, ainda a semana passada levaram um que estava a fazer rappel e caiu.»
    «Pterodáctilos????»
    «É o nome que se dá aos cangalheiros daqui... são uns abutres como os outros, mas mais primitivos e abrutalhados.»

    Pois é, umas semanas antes houve quem tentasse fazer rappel sem segurança e sem saber amarrar as cordas e viu o chão a aproximar-se mais depressa do que gostaria. Ficou em mau estado e a Câmara deixou de permitir que se descesse da ponte sem autorização escrita. O Panzer tinha telefonado dois meses antes, quando andava a planear a viagem, por isso não sabia.

    Foi um pequeno contratempo, mas largamente compensado pela chacota que fizemos do Radical até irmos fazer a descida do Zêzere.

    Chegada a altura de meter água, isto é, partir para a canoagem embarcámos numa station-wagon Mercedes velhota, que levava a reboque todas as canoas. Antes de partir, o condutor buzinou. É claro que já não tinham a buzina de origem da carrinha. Não, não tinha comprado uma que tocava a Cucaracha. Era uma sereia de um navio!

    PÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔ....

    E começámos a ver os habitantes de Punhete (Punheteiros? Punhetenses? Constancienses? Constantes? Habitantes de Constância?) a acorrer às janelas, acenando com lenços brancos, atirando serpentinas e papelinhos, como quem se despedia de um paquete. «Engano-os sempre!», vangloriava-se o condutor.

    Chegados à barragem de Castelo de Bode, lá esperámos pelos carregadores, que tinham vindo a correr atrás do carro - não havia lugar para todos e eram só 15 km! Depois de terem posto as canoas na água e enxotado as piranhas (atirando o mais velho à água, pois claro) lá nos preparámos para partir.

    A descida decorreu sem grandes problemas. Não encalhámos muitas vezes, os crocodilos só nos comeram duas pagaias e não fomos ao banho (não intencionalmente, isto é). É claro que tivemos de habituar o corpo uns dos outros à temperatura da água, com o auxílio das pagaias... até era bastante divertido, excepto quando chegava a nossa vez de sermos baptizados.

    Fizemos uma paragem na foz do Nabão e aproveitámos para nadar um pouco (quer dizer, eu chapinhei mais que a média).

    Mais pirolito, menos pirolito e voltámos às canoas, onde afastámos os crocodilos a pontapé (semos os máiores, não semos?).

    A partir do Nabão, a prática do pirolito está terminantemente proibida. A cidade de Tomar é famosa por encher o dito rio com excrementos nabantinos (puré de nabo?). Não deve ser muito saudável beber aquela água.

    O primeiro troço da viagem levou cerca de uma hora para ser percorrido, a parte que faltava para regressar a Constância ainda iria levar mais duas horas. E já estávamos a ficar cansados (excepto o Radical...). O que nos animava era a expectativa do almoço que estava à nossa espera no parque de campismo.

    As duas horas seguintes passaram sem novidade. À excepção das vezes que encalhámos, a viagem decorreu num ritmo bastante calmo.

    À chegada todos estávamos bastante cansados, menos o Radical, que veio a receber o prémio da Associação Portuguesa de Remo pela pagaia mais limpa de Portugal. Não foi sem esforço que conseguiu esta proeza, afinal tinha passado todo o passeio a dar banho ao remo! O MigMac que o diga!

    Depois de um lauto almoço, do qual os carregadores não partilharam (pois as piranhas tinham almoçado primeiro) voltámos a arrumar as tralhas que tínhamos desarrumado para ir tomar um belo dum duche quente.

    O regresso decorreu sem incidentes, mas é óbvio que o Radical se fartou de ouvir por não ter conseguido fazer rappel... embora tenha vindo um pouco convencido por causa do prémio. Acho que o confundiu com o título de Mr. Universo... e logo ele, todo cheio de músculos e vigor.
    Não fosse a direcção assistida do seu magnífico Saxo e nem exercício fazia para além de virar as páginas das cotações automóveis e comparativos entre modelos do grupo Volkswagen pintados de cinzento.

    Já vos contei da expedição a Tróia em que ele levou as revistas dos comparativos?

    Qualquer dia conto-vos como correu a segunda descida do Zêzere!  

 

Queluz, 20 de Setembro de 2002
54 anos e 1 dia depois do meu pai nascer.