Biografia e notas pessoais
Capítulo Terceiro
também conhecido como
Terceiro Capítulo,
onde se relatam os acampamentos de Tróia
Os factos que
relato referem-se a um já remoto Verão. Apenas
os anciãos mais velhos e alquebrados se lembram
de ouvir os avós contar histórias que tinham
ouvido em pequenos, de
aventuras vividas há muito, muito tempo, pelo
Verdadeiro Profeta.
É de salientar que a minha
reconhecida divindade é invocada nas lendas mais
obscuras.
«Tudo começou
quando o Verdadeiro Profeta resolveu empreender
uma viagem de retiro espiritual...» contava
Moisés. «Encontrava-se acompanhado por diversos
discípulos. Partiu de uma povoação onde,
séculos antes, tinha existido uma importante
comunidade indiana de vendedores de lucernas -
Qué-luz?». É daqui que nasce o culto a um tal
de "Afonso, o Criador" por parte de
algumas etnias do sub-continente indiano.
O mercado tem mudado muito, as
lucernas foram substituídas por flores e, mais
tarde, por barretes de Pai Natal - um velho gordo
para sempre associado a um veneno borbulhante.
Outras fontes
referem que, entre os discípulos, se encontrava um
sujeito que, de tão magro era, usava um pijama
às riscas com uma risca só. Na altura em que
estes acontecimentos tiveram lugar ainda
apresentava uma farta cabeleira negra, mas agora
é famoso pelos seus cabelos brancos. Ficou para a
História como Radical, o Alfabetador-Mor dos
grãos de areia pisados pelo Messias.
Devido ao seu profundo egoísmo
foi incapaz de, durante toda a peregrinação,
ajudar os camponeses das zonas desérticas por
onde passaram. Recusou-se sempre a adubar os
campos. Dizia desconhecer o método. Desculpas
esfarrapadas, já que se tornou público de que
era um prolífico multiplicador de si próprio.
Entre os restantes acompanhantes da caravana destacam-se Beta, a Matemática Real, MigMac, o Gordo e Alex, o Sadino. As multidões em extâse tiveram de ser afastadas com pragas de gafanhotos pois faziam demasiado barulho e não me deixavam dormir a sesta.
Beta tentou salvar um homem que se afogava, mas só conseguiu dizer «Levante o útero para flutuar melhor!». O homem começou a rir-se e afogou-se nesse momento...
Nesta sua
peregrinação aos lugares santos mais remotos, o
Profeta cruzou-se com povos
conhecidos apenas em lendas, de estranhos
hábitos. Diziam-se muito delicados, de gostos
refinados e davam em doidos se partissem uma unha.
Costumavam percorrer o litoral, procurando alguém
que lhes coçasse as costas com o peito.
De entre os seus ritos
iniciáticos, destacava-se um que consistia em
desnudarem-se para bronzear partes do corpo que o
pudor me impede de referir.
Constava que costumavam saltar
ao eixo nas matas costeiras, alguns brandindo
lubrificantes ou envergando másculos chapéus
texanos e calções de lycra.
Devido a uma
antiga aversão por semelhante povo, um dos
discípulos - um tal de Alex, o Sadino ergue uma
coluna magnífica. Nesse monumento liam-se
inscrições, numa língua hoje esquecida, deveras
insultuosas para com aquela comunidade. É óbvio
que não ficaram agradados. Revoltaram-se.
Quando se aperceberam de que a
criatura sadina tinha as costas quentes -
acompanhava o Messias, pois então - retiraram em
debandada daquelas terras, para nunca mais voltar.
A população local comemorou a expulsão dos seus
opressores com grandes festejos em honra de
"Alex, o Libertador", com fogo-preso,
comida, melgas e tudo o resto.
Não
concordando com uma expulsão tão brutal daqueles
pacíficos homens decidi, na minha infinita
bondade, deixar-lhes uma gigantesca alheira de
presente no seu local de culto - facilmente
reconhecível pelas marcas de joelhos lá
deixadas. Assim não teriam receio de passar fome
na sua diáspora causada pelo sadino. Nunca
voltaram para a levar. Nesse momento senti-me
incompreendido e entrei em crise existencial -
seria possível a minha (claramente evidente)
origem divina ser ignorada?
Neste ponto deu-se a maior Revelação dos poderes divinos do Messias. Radical, a tosta humana perdeu a noção do tempo e do espaço e tentou reduzir-se a um torresmo expondo-se à radiação proveniente de um reactor de fusão nuclear que orbita em volta do Escolhido. Se não fosse pela sua intervenção divina, movendo a Lua e provocando um eclipse, Radical estaria reduzido a um montículo de cinzas.
Ao prosseguirem
a sua viagem deram pela falta de um importante
membro da sua comitiva. Leite estava
ausente em parte incerta. Bem que Radical chamou
por ele. Bem que Radical revolveu todas as pedras
daquele deserto. E cavou por todo o lado, mas não
encontrou Leite. Teria sido mais fácil encontrar
petróleo, pois Leite estava bem escondido.
Radical bem que clamou por ele «Ah-ah! Onde está
o pão? ... Leite! Leite!». Mas Leite não queria
ser encontrado. Espalhou-se a palavra,
distribuíram-se imagens de Leite pelos 4 cantos
do Mundo, pelos 7 Mares, pelos 5 Continentes e
pelos 10 Mandamentos. Leite não dava sinais de
vida...
Acontece que, enquanto treinava
os meus poderes de telecinese, tranquei Leite na
casa de banho. Um lamentável acidente,
prontamente resolvido assim que tomei conhecimento
do caso. Os meus poderes místicos permitiram-me
descortinar o local exacto do seu encarceramento.
Leite voltou para junto de nós, onde foi ingerido
pelo torresmo humano, num bárbaro acto de
canibalismo ritual, muito em voga naqueles dias.
As suas últimas palavras foram as de estar grato
por ter podido presenciar Radical a cavar a areia,
de rabo para o ar.
A grande seca
ocorreu quando um dromedário de nome Radical
resolveu atestar o estômago de água, coisa que
só faz a cada 6 meses. Como estávamos
distraídos com a sesta na hora do calor, bebeu o
que quis e deixou-nos a seco. Tivémos de
atravessar o deserto escaldante, penetrar nos
sertões mais inóspitos, bem dentro do
território inimigo - a Urbanização dos Árabes.
Chegados lá abastecemos os nossos odres. Na
viagem de regresso um dos camelos espantou-se e
perdemos metade da nossa carga. À míngua,
poupando cada gota do precioso líquido
conseguimos regressar ao acampamento. Não fora a
sorte de uma chuva diluviana e estaríamos
liofilizados.
Reconhecemos a chuva como
diluviana pois apareceu-nos, uma manhã, uma
traineira de arrasto de mexilhão. Era apenas um
engenhoso disfarce da famosa Arca do Ti Noé, que
andava à cata de um casal de ameijoas para a sua
colecção. Dizia que o Mundo ia acabar. Até
parece que eu, Omnisciente, não havia de saber...
Alguns meses depois, fomos cercados por assassinos
profissionais a soldo de uma seita rival - a GNR.
Deva-se dizer, de passagem, que tinham um ar um
bocado imbecil...
Queiram, obviamente, limpar o
sebo ao Escolhido. Na melhor tradição militar
apresentaram um ultimato «A Lei não permite que
acampem aqui. Toca a arrumar as trouxas e
pisguem-se, senão...» Ficou claro que a
situação era grave. A alta sacerdotisa Lei
sentia-se ameaçada pela nossa presença. Nesse
momento foi decidido seguir o exemplo dum tal de
Maomé e fugir para Meca durante a noite.
O regresso a casa, pela alvorada, foi triunfal. O
Escolhido tinha feito a peregrinação a todos os
lugares sagrados da Península de Tróia, andado
sobre a água (de Ferry, claro) e viajado à
velocidade do pensamento (estudo efectuado com
pensadores lentos).
De entre os seus imensos
poderes, destaca-se a capacidade de mover corpos
celestes, provocando eclipses a seu bel-prazer.
E assim concluo o relato verídico das minhas aventuras nos acampamentos de Tróia.
Queluz, 31 de
Janeiro de 2002
111 anos depois da primeira tentativa de
implantação da República, no Porto.